Contos antigos: Gorgana (tentativa de conto gótico)

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Envolto nas mais profundas névoas… Rodeado das mais negras águas, onde o negro gélido só era substituído pelo encarnado do sangue dos heróis que pela pátria morriam… Mártires, tantas vezes na mais tenra idade.

Aí ficava o castelo. O castelo era imponente. Frio. Escuro. Sujo. Quem olhasse para ele sem atenção acharia que aquele castelo tinha sido erguido por alguma força demoníaca. Nas terras mais próximas já ninguém se lembrava da construção do castelo.

Nesse castelo morava uma família nobre. O pai, um tal senhor que havia servido ao rei, tivera por recompensa, depois de uma lesão grave na perna, aquele castelo e as terras envolventes. Desposou uma mulher que ninguém conhecia; não falava a principio (não conhecia a fala lusa), era dotada de uma beleza extraordinária, quase divina. Os cabelos, estranhamente brancos para uma mulher tão jovem, corriam-lhe em madeixas brancas pelos ombros, os seus olhos eram do azul do mar e do céu, misturados numa só sublime cor. A sua candura, a sua palidez, eram de tal forma acentuadas que dir-se-ia que quando o sol batia no castelo ela o reflectia. Toda ela brilhava e era luz; parecia divinamente mística. Um anjo caído na terra. O povo dizia que a jovem mulher do senhor tinha poderes mágicos e quando tocava nas ervas elas floriam, os pássaros cantavam e as árvores davam frutos. No ano após o casamento do senhor, as colheitas foram muito satisfatórias naquelas terras, contra todas as possibilidades.

A história daquela senhora era outra. O seu nome verdadeiro era Gorgana. Gorgana era uma fada, uma fada do rio. Vagueava só e sem rumo um dia solarengo, nua, com flores no cabelo branco, brincando nas águas do rio e enchendo-as de vida. Brincava com os peixes. Podia respirar dentro de água mas costumava envolver-se em brigas com as sereias do rio se se aventurava muito para além dos seus limites. Toda a sua vida tinha simplesmente servido a natureza, pois ela também era como um ramo de uma árvore ou um peixe do rio. Gorgana era parte da natureza. Não se lembrava de parentes ou de ter nascido, ou crescido. Gorgana sempre fora aquilo que era naquele momento.

Até que um dia, aquando de uma das muitas guerras dos homens, estava Gorgana sentada em cima de uma pedra musgosa na margem do rio, num dia nublado no Inverno, e um homem saiu a correr como um louco das moitas, desfalecendo junto á margem do rio. O homem estava muito ferido na perna. O sangue escorria pelos seixos do rio e dissolvia-se nas águas.

O coração de pequena ave paradisíaca de Gorgana batia muito acelerado. O que devia ela fazer? O homem fazia parte da natureza. Se Gorgana cuidava de um peixe porque não havia de cuidar de um homem?

Aproximou-se dele. Pousou suavemente as suas mãos sobre a cabeça do homem. Suspirou e sentiu toda a vida que fluía do homem. Nunca tinha tocado num homem. Se não o curasse o homem ia morrer. Soprou-lhe para a ferida, num sopro mágico de vida. O homem abriu os olhos. Naquela altura o senhor aspirava dos poderes de Gorgana e das dores do seu ferimento. Aspirou também a visão da bela Gorgana. Achou-a a mulher mais bela que já havia visto e prometeu a si próprio naquele momento que aquela era a mulher com quem casaria.

Gorgana ficou a observar o homem ao longe. O homem foi recuperando, até que por fim se levantou, e, a cambalear, se aproximou do sítio onde estava Gorgana.

- Senhora! Não sei quem sois, mas é convosco que me quero casar. Parti comigo agora e casai-vos comigo. – Gorgana observou com curiosidade e inocência o homem. Não percebia nada do que ele lhe dizia.

- Aqui voltarei daqui a um mês para vos vir buscar, senhora minha! Estai aqui se quereis partir comigo! – Gritou o homem, virando-se em seguida para as moitas de onde tinha vindo, arrastando a perna.

Gorgana era como uma criança em todos os sentidos. Rapidamente esqueceu o fugaz encontro com o Homem.

Quis Deus ou o destino, mas passado exactamente um mês, tinha andado Gorgana a aventurar-se nas margens do rio, a brincar com as moitas, tendo o cabelo cheio de folhas e flores destas, quando decidiu sentar-se junto exactamente das mesmas moitas de onde tinha vindo o homem. Subitamente uma mão agarrou-lhe um braço.

- Ah! Estás aqui minha formosa. – Era o mesmo homem.

Um humano tinha-lhe tocado. Gorgana gritou de horror. Estava tão assustada que mal conseguia respirar. O homem trouxe um pano branco com a cobriu, e ainda agarrando-a firmemente, ignorando os seus gritos e as suas tentativas de se libertar, montou-a no seu cavalo. Dali partiram, e no mesmo dia fez-se a boda. Mas a Gorgana não estava reservado nada de bom. O senhor era muito bom para ela. Mas todo o mundo humano para onde ele a tinha trazido roubava-lhe, pouco a pouco, a sua magia, a sua candura, a sua perfeição, a sua inocência. Foi-lhe dada uma velha aia do castelo. A aia ensinou-lhe a falar, com muita calma, pacientemente. Cuidava dela, tratava-a. Mas mais importante, desde o inicio aquela aia sentia a enorme necessidade de proteger a sua inocência. Sabia que Gorgana era uma criança pura. Gorgana tinha os mais belos vestidos, as mais doces iguarias, os mais confortáveis colchões. Quase não mantinha contacto com ninguém, só com a sua aia.

Mas cada dia que passava no castelo parecia enfraquecê-la.

O senhor era muito bom com ela e sentia-se enamorado simplesmente por estar na sua presença. No fundo, ele também sabia a mulher com quem tinha casado uma criança. E respeitava-a. Um dia houve uma querela entre ele e um nobre de uma terra vizinha, relacionado com, precisamente, a divisão das terras. A sombra da guerra avizinhava-se, e o senhor chamou o seu irmão para o ajudar a resolver o assunto. Ao chegar ao castelo, o seu irmão ficou abismado com a beleza de Gorgana. Mas as suas intenções foram desde o princípio muito menos nobres. Um dia Gorgana estava só, olhando as margens do rio por entre as ameias de um recanto isolado do castelo. Ali ninguém a podia descobrir, nem perturbar. O irmão do senhor viu-a, por momentos, e ali mesmo decidiu beijá-la e tomar aquela dama como sua. Gorgana pressentiu logo as suas intenções e guinchou como um animal ferido. Ao ver que ninguém a acudia, utilizou o último suspiro mágico para o afastar com um coice mágico. Ao perceber o que se passava, o irmão do senhor olhou-a cheio de ódio.

- Bruxa. Bruxa. Bruxa. – gritou-lhe, e dizendo isto deu-lhe uma bofetada. Gorgana sangrou da sobrancelha. O irmão do senhor abandonou-a ali. Gorgana sangrava e olhava o seu sangue, desgostosa. Sabia ali que a sua morte começava. A morte de uma fada não é igual á de um humano. Começa quando uma fada sangra. O corpo vive, mas envelhece extraordinariamente em sete dias, e na sétima noite a alma separa-se do corpo, transformando-se num demónio maligno do elemento da natureza que antes guardava, e assombrando os vivos que restassem ligados ao corpo. Foi a sua aia que a encontrou. Gorgana contou-lhe o que se tinha passado, entre gritos e lágrimas. A aia limpou-lhe a ferida da sobrancelha e à hora da ceia foi contar tudo num murmúrio ao senhor. O senhor nem pensou duas vezes. Sacou da sua adaga e enfiou-a no corpo do irmão, cego de raiva.

No seu quarto, Gorgana contorcia-se com dores. O seu corpo envelhecia – e agora havia sido derramado sangue por ela, o que amaldiçoaria a sua existência e a baniria do mundo natural. Chorou mais. Amaldiçoou o dia em que encontrou o senhor, na margem do rio. No primeiro dia Gorgana acordou com 40 anos. A sua cara estava coberta de rugas e a sua vista começava a falhar. Viu frequentemente demónios que a chamavam para o seu mundo naquele dia. No segundo dia, Gorgana acordou com 50 anos. Tinha agora mais rugas, e estava parcialmente cega. Gritava com agonia, coberta de dores. Nas suas visões, via o senhor ser morto pelas suas unhas, que eram enormes e lhe trespassavam o coração. No terceiro o dia o seu corpo mingou, os seus olhos encheram-se de uma névoa branca, e as unhas, das mãos rugosas e acinzentadas, tornaram-se negras e grandes. No quarto dia, Gorgana já não conseguia andar por si. No sexto dia o cabelo de Gorgana começou a cair em camadas. Um servo vinha trazer as notícias da sua amada todos os dias ao senhor. Ele não se atrevia a ir vê-la, pois tinha receio de agravar a condição de Gorgana. Mas ao sétimo dia foi vê-la. Ao entrar no quarto o cheiro era pestilento. A velha aia estava sentada num cadeirão ao pé da cama, sem expressão, pensativa, olhando uma velha senhora que estava a morrer na cama.

Uma criada cruzou-se com o senhor.

- Diz-me onde está a minha mulher. Acho que me equivoquei no quarto.

- Não vos equivocaste não, meu senhor. Aqui está a mulher, em corpo, com quem vos casaste. Todos nós temo-la visto envelhecer cada dia que passa. Dos seus olhos azuis foram feitos dois poços assombrosos de lodo branco. O seu cabelo caiu e todo o seu corpo envelheceu. As suas unhas cresceram. Em breve a mulher com quem vos casaste irá falecer.

O senhor ficou abismado. Aproximou-se da cama com medo.

- Esta não é a mulher com quem casei. – disse, assustado. Uma voz de velha, muito débil, respondeu-lhe.

- Meu amor?

E dizendo isto Gorgana adormeceu, do cansaço de falar. O senhor abandonou o quarto e precipitou-se para o seu, confuso. A noite caía, sinistra. Na escuridão da noite erguia-se um nevoeiro que engolia todas as palavras. Porém insistentemente, pareceu-lhe ouvir um cantar gutural de mulher, um eco entre as paredes do palácio e do nevoeiro. Por fim, ouviu-o junto a si.

Gorgana estava atrás de si, bela como no primeiro dia que a havia visto, vestida de branco, porém, os seus olhos estavam negros, como se tivessem sido arrancados, toda ela estava suja de uma substância lodosa negra, os seus cabelos estavam irregularmente distribuídos pela cabeça, nalgumas zonas não havia cabelo, e as suas grandes unhas pretas, como as de um animal, esticavam-se no ar. Um sorriso perverso descaía-lhe na boca.

- Ah, estás aqui, meu amor. Tive uma horrível visão, em que uma criada me dizia que tu eras uma mulher velha moribunda. Agora vejo que a tua etérea beleza foi além da doença. – dizendo isto aproximou-se de Gorgana, esticando os braços para a abraçar.

- Meu amor?! – disse aquela Gorgana, num riso diabólico. E esticou as unhas para o peito, sentindo o coração do Homem ser perfurado, roubando a vida que já lhe havia dado.

- Meu amor. – murmurou, por fim, em paz. Aquela Gorgana desvaneceu-se no ar, em gargalhadas pelo castelo, pelo nevoeiro, pelo rio. As pessoas do castelo rangeram os dentes de medo ao ouvir as gargalhadas, e uma pobre velha moribunda, num dos altos quartos do castelo, morreu ao pronunciar um grito mudo, agarrada ao coração, com os olhos muito abertos (embora padecesse de cegueira). A aia, desgostosa, enterrou o seu corpo no dia seguinte, envolvendo-a numa mortalha feita por ela, e no dia a seguir a esse o do senhor, que tinha morrido de uma morte misteriosa e horrível.

Nunca mais ninguém falou naquilo que se havia passado, mas consta, que em todas as sétimas noites de nevoeiro após o começo do ano, alguém naquelas terras morre com aquelas unhas negras a trespassarem-lhe o coração e aquelas gargalhadas.

Há mesmo quem diga que já viu uma dama de branco, com um ar diabólico, caminhar junto do castelo e das margens do rio nessas noites.

1 comments:

Anonymous said...

Deixei um comentário lá no MG *-*

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